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Abdalla e Landulfo

O caso Marília Mendonça: com quem fica a guarda dos filhos quando morre a mãe?

Autor: Paula Freire Santos Andrade Nunes e Maria Carolina Brunharotto Garcia

Data de publicação: 23/11/2021

À primeira vista daqueles filhos que têm em suas vidas a presença paterna concreta e diária, a resposta seria objetiva: com o pai. Entretanto, a precoce e trágica morte de uma das mais queridas e promissoras cantoras do país levantou o questionamento de quem seria o responsável pelos filhos menores ou incapazes quando a mãe falece, sem que tivessem os filhos convívio com o pai.

E não é para menos a preocupação das mulheres: há quatros anos o percentual de crianças com apenas o nome da mãe na certidão de nascimento voltou a subir, crescendo para 5,5% em 2018, 5,9% em 2019, 6% em 2020 e 6,3% em 2021[1]. Entre janeiro à julho/2021, foram 100 mil crianças registradas sem o nome do pai. Ademais, há ainda aquelas que, apesar de constar em seu registro o nome do pai, são criadas apenas pela mãe ou família materna sem convívio com o pai.

Se perguntado à Contituição Federal ou às leis especiais, como o Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente, a resposta dada à pergunta será que a guarda de filhos menores, ou seja, daqueles que ainda não completaram 18 anos, ou de filhos incapazes - que são as pessoas vulneráveis e com algum grau de enfermidade que lhes impede de exercer os atos da vida civil sozinhas independente da idade- é de ambos os pais, biológicos ou juridicamente socioafetivos, sendo que na ausência de um deles, o outro deve assumir integralmente a responsabilidade pelo incapaz.

Desta feita, se analisado de forma simples o caso da cantora famosa que faleceu deixando um filho menor de 2 anos incompletos, fruto do relacionamento com o namorado com quem já não mais estava, concluir-se-á que a guarda da criança será integralmente exercida pelo pai, que deterá todos os direitos e deveres sobre a mesma, independente da concordância ou não da família materna.

Ao que parece, no caso da cantora, a criança tinha intenso convívio com o pai e família paterna, o que pode facilitar a solução do caso e a mantença do bem estar da criança. Entretanto, se resgatado o percentual de crianças que não convivem com seu respectivo pai, questiona-se como o vínculo paterno será criado ou restabelecido de modo que a criança seja cuidada pelo pai, na ausência da mãe. E outra: e se o pai não demonstrar interesse em tê-la consigo, por quem a criança será cuidada?

Nesta seara, antes de se analisar as possibilidades jurídicas em caso de ausência da mãe, é importante diferenciar o conceito dos institutos do Poder Familiar e da Guarda.

A Guarda é um instituto jurídico que se propõe a regularizar a posse de fato da criança, prevendo o acolhimento do menor por ambos os pais, por apenas um deles ou até por terceiros (parentes ou não), quando esse não recebe a devida proteção de seus pais ou quando estes estão ausentes. Tal instituto encontra previsão no Código Civil e no Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (lei 8.069/90).

A guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente do guardião para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários (artigo 33, § 3º do ECA), e pode ser unilateral ou compartilhada.

Quando é unilateral, é atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua. Quando é compartilhada, há a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres concernentes ao poder familiar por ambos os genitores.

Já o Poder Familiar é o instituto que retém um conjunto de direitos e deveres que os pais exercem sobre seus filhos e está previsto nos artigos 1.630 à 1.638 do Código Civil. A expressão, que antes era chamada de ‘pátrio poder’, carrega – assim como sua antecessora- uma conotação de patriarcalismo e poderio exacerbado dos pais perante os filhos. Assim, doutrinariamente, vem sendo substituída no Direito de Família por ‘responsabilidade parental’, de forma que esteja presente a hierarquia dos pais sobre os filhos, mas sem desconsiderá-los como membros da unidade familiar.

São exemplos de obrigações inerentes ao poder familiar que devem ser excercidas pelos pais, qualquer que seja a situação conjugal existente entre eles: educar e criar seus filhos, exercer-lhes a guarda, conceder ou negar autorização para o casamento, para viagens ao exterior e para alteração de residência para outro Município, nomear-lhes tutor, representá-los e assisti-los judicialmente, dentre outros.

Este poder familiar pode se extinguir em 5 (cinco) hipóteses: pela morte dos pais ou do filho, pela emancipação ou maioridade do filho, pela adoção ou por decisão judicial. E vale ainda observar que o filho, não reconhecido pelo pai, fica sob poder familiar exclusivo da mãe.

Assim, esta responsabilidade parental (ou poder familiar) dos pais perante seus filhos nasce e caminha com eles, independente se, pelas circunstancias da vida, os pais se divorciarem, se nunca tiverem vivido um relacionamento afetivo ou se contraírem novos núcleos familiares. Ainda, independente do tipo de guarda excercida, ambos os pais têm direito de exercer o poder familiar sobre seus filhos menores em igualdade de condições.

Desta feita, a guarda, disposta pelos artigos 1.583 à 1.584 do Código Civil, é um dos elementos do exercício da responsabilidade parental.

Desde 2014, com o advento da Lei 13.058, a guarda compartilhada é a legal na doutrina brasileira. Isso significa que a unilateral apenas será aplicada excepcionalmente e, mesmo que o seja, o pai ou a mãe que não a detenha tem direito e dever de supervisionar os interesses dos filhos.

Por exemplo, na guarda compartilhada é dever de ambos os pais escolherem a escola e método educacional no qual será o filho matriculado. Já na guarda unilateral, esta decisão será apenas do genitor que detiver a guarda. Todavia, aquele que não a detenha tem direito e dever de supervisionar e solicitar quaisquer informações e/ou prestação de contas, objetivas ou subjetivas, em assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a educação, saúde física e psicológica de seus filhos.

Antes do advento da Lei da Guarda Compartilhada em 2014, as decisões judiciais, já liminarmente, ou seja, sem nem ouvir o pai, deferiam à mãe a guarda unilateral de seus filhos, independente da idade. Ou seja, não se observava se os filhos estavam em fase de amamentação ou já em período escolar, e nem tampouco se o pai conseguiria ou teria interesse em tê-los consigo. Quase a totalidade das decisões entendia que somente a mãe era suficiente na vida daquela criança, relegando o pai às visitas de finais de semana, a cada 15 dias.

Esse histórico, criou na sociedade a irreal constatação de que os homens não querem e não sabem exercer os cuidados básicos para com seus filhos e de que mulheres tem o dom natural, nascido com elas apenas por serem do sexo feminino, de serem detentoras de todo o conhecimento sobre criação e cuidado, culminando na máxima “O filho é da mãe”.

Esse talento que seria supostamente natural das mulheres, afastou os homens da responsabilidade de assumirem o papel de pai e fez com as mulheres carregassem no colo – como se não bastasse o filho- todas as reponsabilidades pela educação, criação e cuidado destes menores, enquanto o homem pagava mensalmente uma quantia para contribuir com as despesas.

Talvez alguns poucos discordem, mas é quase inegável concluir que os homens foram privilegiados por essa retórica que os definiu apenas como pagadores de uma certa quantia mensal. Isto pois, fato é que, irrisória tal quantia ou não, o puro e simples pagamento da prestação alimentícia não atrelado ao convívio com o menor traz a ideia de que os homens estariam pagando uma funcionária para exercer o papel que não fazem.

Esta ideia ainda enrraizada na cultura brasileira de que cabe ao homem apenas o pagamento de alimentos e à mulher, a criação, trazia 2 problemáticas claras: o homem não assumia a quantia correta de pensão alimentícia (muitas vezes escondendo patrimônio), pois como não convivia com a criança, seja porque não queria ou porque não lhe foi permitido, não criava com ela os vínculos afetivos necessários para desejar seu bem estar e se preocupar com ela financeiramente; e, de outro lado, a mulher se percebia escrava da maternidade, sem apoio psicológico e/ou financeiro, para exercer aquele que é o mais dificil papel pra qualquer espécie de animal: criar outro ser.

Então, o que almejou a Lei da Guarda Compartilhada quando claramente trouxe que “(...), o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos.”, foi romper este cenário histórico e discriminatório, entregando ao pai a responsabilidade diária de cuidados com a criança e à mãe a necessidade, muitas vezes incômoda, de se ver fisicamente longe do seu filho.

Na prática, se faz necessário entender que a autonomia do ser é limitada a partir do momento que outra pessoa lhe é dependente. Portanto, ao se ter um filho, não importa se com ou sem vontade, há que se encaixar as necessidades dele acima da dos pais e assumir a responsabilidade parental.

Se a proposta de direitos e deveres iguais na criação dos filhos for concretizada socialmente, será mais fácil responder de quem será a guarda dos filhos menores, pois na ausência de um dos pais, será natural que a guarda integral da criança seja excercida pelo outro.

Todavia, como esta ainda não é a realidade, muitas mães se questionam com quem ficariam seus filhos na sua ausência, quando pai não é presente na vida deles. Infelizmente, o Direito ainda incluiu em texto de lei uma resposta prática à pergunta, mas algumas possibilidades podem ser aventadas.

Por exemplo, em resumo a tudo que aqui foi exposto, conclui-se que se falece a mãe, o pai, que já tem o poder familiar sobre a criança, exercerá integralmente sua guarda; todavia, é possível que ela seja compartilhada com terceiros. No caso concreto da guarda do filho menor da cantora Marília Mendonça, por exemplo, resolveu-se que será compartilhada entre o pai e a avó materna da criança, prevalecendo o princípio do Melhor Interesse do Menor.

Para que esta seja a solução, é imprescíndivel, contudo, ou a concordância do pai ou uma decisão judicial. Assim, na tentativa de exprimir sua vontade e tê-la atendida após a morte, poderia a mãe indicar em testamento, negócio jurídico que só produz efeito após a morte do testador, quem ela gostaria que exercesse a guarda de seu filho de forma compartilhada, juntamente com o pai. Assim, a ideia não seria impedir que o pai excerça a guarda em caso de falecimento da mãe, mas sim que a compartilhe com quem indicado pela mãe, em testamento.

Apesar da ideia de testamento remeter na maioria das vezes à disposições patrimoniais, é certo que o artigo 1.857, parágrafo 2°, do Código Civil, afirma que “São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado”.

Assim, considerando que é disposição legal a possibilidade de constar direitos pessoais em testamentos, e considerando que a guarda de filhos menores é um direito/dever dos pais, poderia-se considerar que tal direito é passível de disposição testamentária.

Considerando as muitas lacunas da lei e o fato do Direito de Família evoluir diante das necessidades e anseios sociais, é possível, no exemplo acima, que o pai questione tal testamento, alegando que deve ser o único detentor da guarda do menor. Todavia, o fato de ter a mãe deixado disposição de última vontade, possibilita a construção de um conjunto probatório que subsidiará ação judicial para a mantença da guarda compartilhada entre pai e pessoa indicada pela mãe.

O testamento seria também ferramenta importante nos casos em que o pai é ausente e não convive com a criança, que tem sua guarda exercida unilateralmente pela mãe. Assim, poderia ela manifestar seu desejo, indicando terceiro para exercer a guarda de seu filho após sua morte, uma vez que é provável que o pai permaneça ausente.

Em que pese tratar-se de documento burocrático, público ou particular, que deve ter suas formalidades e requisitos observados em lei sob pena de ser considerado nulo, há inúmeros projetos de Lei que tentam modernizar as formas de testamento, sendo o Projeto de Lei 5820/19[2] o mais avançado até o momento, prevendo a possibilidade de testamentos digitais e facilitadores para sua validade.

O testamento é o único documento capaz de produzir efeitos após a morte e, em razão da sua natureza, traria maior segurança jurídica para a manifestação de vontade materna- que seria observada em conjunto com o princípio do Melhor Interesse do Menor.

Outra possibilidade seria a nomeação por ambos os pais de tutor ao menor através de testamento ou de escritura pública de nomeação de tutor, documentos nos quais os pais estabelecerão e registrarão qual é sua vontade em relação à guarda dos filhos, no caso do falecimento de ambos.

Contudo, observa-se que o direito de nomear tutor compete aos pais, em conjunto, valendo a indicação de apenas um deles apenas se o outro não detiver o poder familiar sobre o filho. No caso, por exemplo, de um filho não reconhecido pelo pai (ou seja, não registrado por ele), este não detém poder familiar sobre o filho e, portanto, a mãe, única detentora de tal responsabilidade, poderá nomear-lhe tutor.

Ainda, na busca pela proteção integral da criança e dos bens que eventualmente ela possa herdar, poderá ser nomeado em seu favor um curador especial, figura indicada por qualquer um dos pais em testamento ou escritura pública, para que administre tais bens, independente de quem detiver seu poder familiar, sua guarda ou de que seja seu tutor.

Isto pois, conforme dispõe o artigo 1.733, parágrafo 2° do Código Civil, o pai ou a mãe que fizer do menor seu herdeiro, ou legatário, poderá nomear lhe curador especial para os bens deixados, ainda que o beneficiário se encontre sob o poder familiar, ou tutela.

Esta, portanto, é uma ferramenta eficaz nos casos de casais divorciados, com filhos menores em comum, quando o pai ou a mãe que deixará herança para o filho não confia na capacidade do ex- cônjuge ou ex- companheiro(a) em administrar tais bens. Assim, o tutor nomeado ao filho fará a gestão financeira destes bens herdados, continuando o pai ou mãe sobrevivente no exercício do poder familiar e guarda do menor.

Em todo o caso, para além de qualquer solução encontrada para a proteção do menor e para a mantença da vontade materna e/ou paterna após a morte dos pais ou de um deles, o princípio do Melhor Interesse do Menor deverá ser observado, bem como a situação fática na qual a criança está inserida.

  1. BIBLIOGRAFIA

CÓDIGO CIVIL, Lei 10.406/2002, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm

[1] Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais - https://arpenbrasil.org.br/press_releases/brasil-registra-terceiro-ano-com-queda-consecutiva-nos-reconhecimentos-de-paternidade/ [2] Portal da Câmara dos Deputados, disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2228037


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